As Colonias do Namibe
Dissertações sobre a actual cidade do Namibe tendem a vestir-se de apenas duas roupagens: a épico-bairrista e a bucólico-naturalista, referindo com maior ou menor pormenor, respectivamente as afanosas idas e vindas de primeiros colonos e pescadores, ou o ‘potencial’ turístico da welwitschia e o deambular das cabras-de-leque. Pouco se lê sobre o elo entre a cidade e a maior transformação sócio-económica da História moderna, a criminalização do comércio em mão-de-obra escrava – o tráfico – e os papéis que muitas figuras associadas com a cidade desempenharam nesse longo drama. Sem entrar em pormenores sobre a origem e necessidade económica do tráfico, merece a pena conferir algumas datas na larga periferia temporal da localidade do sul de Angola: o sítio tem raízes compridas e espêssas, alimentadas durante séculos pelo enriquecimento das Américas.
Não tanto as razões humanitárias, de há muito expressas pelas nações europeias – especialmente aquelas cujas economias não dependiam do trabalho braçal em escalas industriais – mas a influência da máquina-a-vapor inglesa sobre o Brasil independente, tornou possível a libertação de todos os escravos daquele país em 1826. A medida causaria na Angola do século dezanove sérios problemas administrativos – derivados da despesa com a prevenção do tráfico ilícito e dos resultados da ociosidade e potencial criminalidade dos libertos desempregados – se a legislação portuguesa tivesse contemplado o caso de uma dívida do Estado para com os senhores e mercadores angolanos. É duvidoso que o problema pudesse resolver-se, mesmo se os governos Liberais que promoveram a Abolição fossem perenemente fortes; assim, merece todo o crédito a orientação política, tão judiciosa quanto o permitiam os preconceitos da época e a conversão lenta da cultura económica colonial, que veio a ser adoptada e passou pela criação de um foco de dispersão de uma economia moderna a partir do antigo porto do barão de Moçâmedes, no sul de Angola.
É ali, à beira do deserto do Namib,
1 que as convicções abolicionistas de um outro barão, o de Sá da Bandeira, tomam corpo num projecto de colonização em cuja cronologia se esboçam a coincidência e o contraste, ocorrem situações extraordinárias e aparecem tipos humanos como os que coloriram a literatura da época Romântica, a que pertenceu, curiosamente, a Abolição.
__________
1. Namib – ‘Terra sem água’ nos dialectos Nama, nome genérico de povos do grupo étnico Khoi (versão inglesa do nome de uma das tribos a sul do Cunene, os Gai //khaun), ou ‘hotentotes’.
__________
* Natural de Moçâmedes, hoje Namibe, Angola. Amigo e colega no Helderberg College, África do Sul, nos anos 60. Depois de terminar os estudos universitários, em Geologia, fixou residência naquele país.
Estou muito reconhecida ao Júlio Victor pela sua tão valiosa contribuição!